sábado, 26 de dezembro de 2009

Poesia e música: amo

"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!

Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma certa tranqüilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve; o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já se não vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho"
Eça de Queiroz O Primo Basílio

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinícius de Moraes

“HORA DE ESQUECER”


E o que eu desejo para mim e para você é esquecimento…
Coisa estranha de se desejar, parece mais uma maldição – pois quem é tolo de querer perder a memória? Eu mesmo vivo falando sobre a felicidade que mora nas lembranças e até mesmo acho que não está errado dizer que somos o que lembramos. Por isso gosto de contar casos, que é um jeito de fazer amor, dar aos outros pedaços da minha vida que o tempo já matou e enterrou, mas que a maga memória faz ressuscitar. Aquilo que a memória amou fica eterno,
disse Adélia Prado, e eu não me canso de repetir. A memória é a presença da eternidade em mim. E é para isso que preciso dos deuses, para que eu nunca esqueça, para que o passado volte sempre…
Recordo as Confissões, de Santo Agostinho. Releio seu maravilhoso capítulo sobre a memória, a meditação mais lúcida e profunda jamais escrita sobre o assunto. Diz ele: Palácio maravilhoso, caverna misteriosa, dentro da memória estão presentes os céus, a terra e o mar… Dentro dela eu me encontro comigo mesmo… É nela que moram os segredos da vida e da morte… E andando pelos seus caminhos, o santo vai à procura do obscuro objeto da nostalgia que faz o seu coração doer, e que beleza alguma é capaz de curar. Ele entra na memória como amante que vai à procura da amada, perdida…
E venho eu e desejo a todos o esquecimento… É que, por vezes, é preciso esquecer para poder lembrar…
Pois a memória, como o próprio santo notou, é o estômago da mente…. Para ali vão as comidas mais variadas, umas saborosas e de digestão fácil, outras amargas e impossíveis de serem digeridas. Quando isso acontece, o corpo se contorce e enjoa, e coisa alguma é capaz de fazê-lo feliz. Até que o próprio corpo se aplica o remédio, vomita, e assim se livra da comida que o fazia sofrer.
Memória, estômago: há nela coisas que precisam ser vomitadas, para que corpo possa de novo se alegrar. Pois o esquecimento é a memória vomitando o que faz o corpo sofrer.
Por isso que Roland Barthes dizia que é preciso esquecer a fim de ficar sábio.
Por isso que Alberto Caeiro dizia que o que ele desejava era desaprender, raspar de sua pele a maneira de sentir que lhe haviam ensinado, para poder, de novo, sentir o gosto bom de si mesmo.
Somos como um navio em que os detritos do mar vão se grudando, em meio ao muito navegar.
De tempos em tempos é preciso que o casco seja raspado, para voltar de novo a deslizar suave pelas águas.
Os detritos da memória depositam-se em nossos olhos, transformam-se numa nuvem leitosa, opaca, catarata, e nos tornamos cegos para o mundo a nossa volta. O mundo inteiro, então, se transforma num monte de detritos.
É preciso esquecer para poder ver com clareza. É preciso esquecer para que os olhos possam ver a beleza.
As Sagradas Escrituras contam a saga da mulher de Ló. Deus permitiu que o casal fugisse das cidades amaldiçoadas de Sodoma e Gomorra sob a condição de que não olhassem para trás, enquanto o fogo do céu as consumia. A mulher não resistiu à curiosidade, olhou para trás, e foi transformada em estátua de sal. Quem fica com os olhos fixados no passado se torna incapaz de ver o presente. E quem não tem olhos para o presente está morto.
Esquecer. Ver com olhos de criança – sem memória.
Mas nem sei por que estou dizendo todas estas coisas para explicar o meu desejo de esquecimento, quando o que eu quero dizer já foi dito por Alberto Caeiro:
O essencial é saber ver/ uma aprendizagem de desaprender/ Saber ver sem estar a pensar/
Saber ver quando se vê/ Ver com o pasmo essencial que tem uma criança, ao nascer/ Sentirse nascido a cada momento/ para a eterna novidade do mundo…
É isso que desejo para você e para mim, no início de cada ano: esquecimento. Tomar um banho. Deixar a água correr pelo corpo… Sentir os detritos do passado se despregando, e entrando pelo ralo. Recuperar o corpo sem memória da criança, para ver o mundo como se fosse a primeira vez…
Rubem Alves

THE ROAD NOT TAKEN


Two roads diverged in a yellow wood,
And sorry I could not travel both
And be one traveler, long I could
To where it bent in the undergrowth
Then took the other, as just as fair,
And having perhaps the better claim,
Because it was grassy and wanted wear;
Though as for that, the passing there
Had worn them really about the same,
And both that morning equally lay
In leaves no step had trodden black.
Oh, I kept the first for another day!
Yet knowing how way leads on to way,
I doubted if I should ever come back.
I shall be telling this with a sigh
Somewhere ages and ages hence:
Two roads diverged in a wood, and I -
I took the one less traveled by,
And that has made all the difference.
Robert Frost
Nossos caminhos são escolhas que fazemos, adoro esta poesia do Frost, pois, compartilho com ele da mesma opinião, escolhemos um caminho, e isto faz toda a diferença.

Tradução


ESTRADA NÃO SEGUIDA

Duas estradas divergiam em um bosque amarelo
e lamentando não poder seguir por ambas
e ser um viajante, longamente eu permaneci
e olhei uma delas até o mais longe que pude,
para onde ela sumia entre os arbustos.

Então, segui a outra, igualmente bela
e tendo talvez clamor maior
porque era gramada e convidativa;
Embora quanto a isso, as passagens
houvessem lhes desgastado quase que o mesmo,

e ambas naquela manhã se estendiam
em folhas que nenhum passo enegrecera,
Oh, eu guardei a primeira para um outro dia!
Contudo, sabendo como um caminho leva a outro,
eu duvidei de que um dia voltasse.

Eu estarei contando isso com um suspiro
a eras e eras daqui:
Duas estradas divergiam em um bosque, e eu –
Eu escolhi a menos percorrida,
e isto fez toda a diferença.

Adoro Cecília Meireles


"No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, urna violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de urna borboleta."

Cecília Meireles

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Poemeu


Estou só... o travesseiro me convida à chorar, as estrelas do céu lentamente se apagam uma a
uma...
O espetáculo terminou...
Meu insubordinado coração teima em te amar... só ele não sabe que tudo acabou
Ah, noite triste, silenciosa... acabe logo... vai embora, pois de manhã meu corpo sucumbi ao cansaço eu durmo...
E amanhã quem sabe eu me convenço de que o que vivemos está para sempre perdido.
S.

Aos amigos que amo


Loucos e Santos
Escolho meus amigos não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila.
Tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante.
A mim não interessam os bons de espírito nem os maus de hábitos.
Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo.
Deles não quero resposta, quero meu avesso.
Que me tragam dúvidas e angústias e agüentem o que há de pior em mim.
Para isso, só sendo louco.
Quero os santos, para que não duvidem das diferenças e peçam perdão pelas injustiças.
Escolho meus amigos pela alma lavada e pela cara exposta.
Não quero só o ombro e o colo, quero também sua maior alegria.
Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto.
Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade.
Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos.
Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça.
Não quero amigos adultos nem chatos.
Quero-os metade infância e outra metade velhice!
Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto; e velhos, para que nunca tenham pressa.
Tenho amigos para saber quem eu sou.
Pois os vendo loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que "normalidade" é uma ilusão imbecil e estéril.
Oscar Wilde

Antimonotomia

Uma gota de tinta que treme na extremidade de sua pena cai marchetando uma página que, sem essa mancha requintada, estaria ameaçada pela monotonia.
GUILLAUME APOLLINAIRE

domingo, 20 de dezembro de 2009

Oásis...


A eternidade...


Ela foi encontrada! Quem? A eternidade.
É o mar misturado Ao sol.

Minha alma imortal, Cumpre a tua jura
Seja o sol estival ou a noite pura.

Pois tu me liberas Das humanas quimeras,
Dos anseios vãos! Tua voas então...

- Jamais a esperança. Sem movimento.
Ciência e paciência, O suplício é lento.

Que venha a manhã, Com brasas de satã,
O dever É vosso ardor.

Ela foi encontrada! Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.
Arthur Rimbaud


Homenagem ao grande gênio da poesia francesa, que apesar de ter escrito por apenas 04 anos, deixou uma obra densa, e cuja a magia da sua escrita, a intensidade do seu amor e o mistério de seu destino continuarão a exercer sobre nossa sensibilidade um poder exaltante de sonho e de emoção. S

Duas Almas

Ó tu que vens de longe, ó tu, que vens cansada,
Entra, e, sob este teto encontrarás carinho:
Eu nunca fui amado, e vivo tão sozinho,
Vives sozinha sempre, e nunca foste amada...
A neve anda a branquear, lividamente, a estrada,
E a minha alcova tem a tepidez de um ninho,
Entra, ao menos até que as curvas do caminho
Se banhem no esplendor nascente da alvorada.
E amanhã, quando a luz do sol dourar, radiosa,
Essa estrada sem fim, deserta, imensa e nua,
Podes partir de novo, ó nômade formosa!
Já não serei tão só, nem irás tão sozinha.
Há de ficar comigo uma saudade tua...
Hás de levar contigo uma saudade minha...

Alceu Wamosy

Poemeu


Amei-te muito antes de te conhecer, amei-te no silêncio da noite, amei-te no amanhecer...
Amei-te na volúpia do olhar, amei-te por imaginar como serias, amei-te pelos sonhos que prometia sonhar...
Amei-te na espera febril, amei-te sem te tocar, amei-te de forma intensa e ardil, amei-te simplesmente por desejar amar...
Um dia chegaste feito brisa, em minha pele vieste tocar, descobri que desde sempre era tua e que só desejava te amar...
Fiz de ti o meu amor, minha vida, meu viver, por ti voltei a crer em preces, me fiz vulcão, me fiz mulher.
Por você enfrento o mundo, brigo, choro não desisto... plageio até o pensador, só que eu amo, logo existo.
S.

Eu amo Moulin Rouge

Fazendo pontes...


Somos a ponte para o sempre, arqueada sobre o mar, buscando aventuras para o nosso prazer, vivendo mistérios, provocando desastres, triunfos, desafios, apostas impossíveis, submetendo-nos a provas e uma vez ou outra, aprendendo o amor.

Sebastian Bach

Esquecer para lembrar



"E o que eu desejo para mim e para você é esquecimento.Coisa estranha de se desejar, parece mais uma maldição – pois quem é tolo de querer perder a memória? Eu mesmo vivo falando sobre a felicidade que mora nas lembranças e até mesmo acho que não está errado dizer que somos o que lembramos. Por isso gosto de contar casos, que é um jeito de fazer amor, dar aos outros pedaços da minha vida que o tempo já matou e enterrou, mas que a maga memória faz ressuscitar. Aquilo que a memória amou fica eterno, disse Adélia Prado, e eu não me canso de repetir. A memória é a presença da eternidade em mim. E é para isso que preciso dos deuses, para que eu nunca esqueça, para que o passado volte sempre…


Recordo as Confissões, de Santo Agostinho. Releio seu maravilhoso capítulo sobre a memória, a meditação mais lúcida e profunda jamais escrita sobre o assunto. Diz ele: Palácio maravilhoso, caverna misteriosa, dentro da memória estão presentes os céus, a terra e o mar… Dentro dela eu me encontro comigo mesmo… É nela que moram os segredos da vida e da morte… E andando pelos seus caminhos, o santo vai à procura do obscuro objeto da nostalgia que faz o seu coração doer, e que beleza alguma é capaz de curar. Ele entra na memória como amante que vai à procura da amada, perdida…


E venho eu e desejo a todos o esquecimento… É que, por vezes, é preciso esquecer para poder lembrar…


Pois a memória, como o próprio santo notou, é o estômago da mente…. Para ali vão as comidas mais variadas, umas saborosas e de digestão fácil, outras amargas e impossíveis de serem digeridas. Quando isso acontece, o corpo se contorce e enjoa, e coisa alguma é capaz de fazê-lo feliz. Até que o próprio corpo se aplica o remédio, vomita, e assim se livra da comida que o fazia sofrer.


Memória, estômago: há nela coisas que precisam ser vomitadas, para que corpo possa de novo se alegrar. Pois o esquecimento é a memória vomitando o que faz o corpo sofrer.


Por isso que Roland Barthes dizia que é preciso esquecer a fim de ficar sábio.


Por isso que Alberto Caeiro dizia que o que ele desejava era desaprender, raspar de sua pele a maneira de sentir que lhe haviam ensinado, para poder, de novo, sentir o gosto bom de si mesmo.


Somos como um navio em que os detritos do mar vão se grudando, em meio ao muito navegar.


De tempos em tempos é preciso que o casco seja raspado, para voltar de novo a deslizar suave pelas águas.


Os detritos da memória depositam-se em nossos olhos, transformam-se numa nuvem leitosa, opaca, catarata, e nos tornamos cegos para o mundo a nossa volta. O mundo inteiro, então, se transforma num monte de detritos.


É preciso esquecer para poder ver com clareza. É preciso esquecer para que os olhos possam ver a beleza.


As Sagradas Escrituras contam a saga da mulher de Ló. Deus permitiu que o casal fugisse das cidades amaldiçoadas de Sodoma e Gomorra sob a condição de que não olhassem para trás, enquanto o fogo do céu as consumia. A mulher não resistiu à curiosidade, olhou para trás, e foi transformada em estátua de sal. Quem fica com os olhos fixados no passado se torna incapaz de ver o presente. E quem não tem olhos para o presente está morto.


Esquecer. Ver com olhos de criança – sem memória.


Mas nem sei por que estou dizendo todas estas coisas para explicar o meu desejo de esquecimento, quando o que eu quero dizer já foi dito por Alberto Caeiro:O essencial é saber ver/ uma aprendizagem de desaprender/ Saber ver sem estar a pensar/Saber ver quando se vê/ Ver com o pasmo essencial que tem uma criança, ao nascer/ Sentir-se nascido a cada momento/ para a eterna novidade do mundo…


É isso que desejo para você e para mim, no início de cada ano: esquecimento. Tomar um banho. Deixar a água correr pelo corpo… Sentir os detritos do passado se despregando, e entrando pelo ralo. Recuperar o corpo sem memória da criança, para ver o mundo como se fosse a primeira vez…"



(Rubem Alves)